A ancestralidade como pauta de negócios afrocentrados no ecossistema de inovação
"Eu sei de onde eu vim e tenho consciência da importância de quem eu sou", afirma Carlos Humberto. Cofundador da Diáspora.Black, uma traveltech focada em experiências imersivas na cultura afro em diferentes cidades e estados do Brasil, ele e seus sócios determinam a ancestralidade como um fator imprescindível em sua startup. "A Diáspora é uma startup relativamente jovem, mas já existia dentro de cada um de nós, por ser parte de nossas histórias. Já vínhamos sendo formados para desenvolver um negócio como esse bem antes do que a gente imaginava".
Filho de uma mulher de fé, Carlos cresceu em um ambiente puramente ancestral. "Eu morei em um terreiro de Umbanda durante 14 anos. Minha mãe sempre foi uma contadora de histórias com uma vocação materna para além do útero. A casa sempre estava cheia e eu cresci ouvindo ela narrar sobre minha família e a relação dela com as ancestralidades", afirma o fundador.
Assim como ele, seu sócio André Ribeiro também cresceu próximo às suas raízes ancestrais por causa de sua mãe. "Ela é educadora, historiadora e uma militante histórica do movimento negro no Rio de Janeiro, então eu bebi nessa fonte de saber da ancestralidade", conta o designer de produtos, que destaca o prazer por levar o conhecimento a outras pessoas como algo geracional.
E por falar em gerações, o jornalista soteropolitano Antonio Pita, que atua ao lado de Carlos e André como COO da startup, é uma das figuras que cresceu sob a influência cultural e histórica do pai e, principalmente, do avô. "Eu sempre ouvi muitas histórias sobre o meu avô, contadas por ele e por outras pessoas. Esses relatos sempre me intrigavam, eu tinha curiosidade, buscava referências sobre tudo aquilo", relembra o jornalista. "Com o tempo fui conhecendo e entendendo mais das referências dos povos africanos, toda a herança e a cultura negra histórica, mas sempre fazendo conexão com o que eu já tinha ouvido do meu avô".
Para além do aspecto afetivo ligado ao avô, foi através de uma experiência com o pai que Antonio compreendeu o despertar para trabalhar com o afroturismo, projeto que já vinha sendo provocado e estimulado por Carlos Humberto. "Em 2014, realizando um sonho do meu pai, eu fiz uma viagem com ele para África do Sul e para a Nigéria. Aquela foi uma jornada com muitas histórias, eram territórios de onde vieram muitos dos africanos escravizados aqui no Brasil, e em certo momento um rapaz comentou que nós tínhamos feito o caminho de volta. Foi uma realização", destaca Antonio.
Com histórias que apresentam diversos pontos em comum, os fundadores da Diáspora.Black são, na verdade, a exceção da regra. Em um país em que mais da metade da população é negra - cerca de 56% de acordo com os dados de 2020 do IBGE - existem poucos fatos e relatos na história que traduzem a origem, costumes e, principalmente, a resistência desse grupo. A busca por respostas sobre as suas origens e raízes saltou exponencialmente nos últimos anos com o aumento na visibilidade dos discursos afrocentrados.
"A sensação sempre é de que a história é muito curtinha", argumenta Thais Ramos, a fundadora da De Benguela. "Eu conheço histórias até a minha bisavó e são sempre relatos de muito sofrimento, de muita luta, de pouco estudo. São histórias bem difíceis."
Faltam histórias para contarmos e falta sabermos quem realmente são nossos antepassados, de onde eles vieram, como eles chegaram, quais seus nomes e sobrenomes
À frente da primeira loja do Brasil especializada em diferentes texturas de cabelo crespo natural para alongamentos e apliques, Thaís se conectou com a sua raíz ancestral durante um momento de autoconhecimento e que, coincidentemente, foi o período em que ela idealizou o seu negócio. "Eu me encontrava em uma conversa interna, me questionando quem eu era, por que meu cabelo havia sido alisado a vida inteira, se haviam mais coisas dentro de mim que também foram podadas. Foi quando eu tive a ideia de abrir uma loja no Brasil que trouxesse essa representação", relembra a fundadora. "No mesmo dia, minha mãe, que mora na Espanha e sequer sabia dos meus planos, me enviou uma mensagem dizendo que a loja para mulheres negras que eu tinha que abrir deveria se chamar Tereza de Benguela."
Thais conta que naquele momento, assim como outros milhares de brasileiros, ela não sabia quem era Tereza de Benguela. Iniciou-se então um grande processo de pesquisa em que ela descobriu que a personalidade em questão foi uma das maiores líderes quilombolas do Brasil. Símbolo de força, Tereza assumiu o Quilombo do Piolho após a morte de seu marido e comandou com resistência uma comunidade de mais de três mil pessoas, que a chamavam de rainha, por um período de mais de 20 anos.
"A De Benguela só nasceu por conta dessa ancestralidade", reitera Thais. "Quando eu descobri a história da Tereza de Benguela eu pensei 'então será que eu sou de Benguela?'. A realidade é que somos todos descendentes dessa história”.
O que Thais define como descendência, André Ribeiro retrata como conexão e legado, uma continuidade do que já tivemos no passado ou, como é popularmente conhecido, ancestralidade. Hoje, esse legado assume uma nova missão, além da preservação da identidade e da cultura: o combate ao preconceito e a invisibilidade histórica, que de forma comum, todos os quatros empreendedores fazem através do ecossistema de inovação e da disseminação de conhecimento.
Ancestralidade e conhecimento
"A partir do momento em que você descobre coisas sobre seu passado, sobre pessoas potentes que às vezes a gente não vê em livros, você não quer mais que isso seja escondido, você quer compartilhar essas informações com o mundo. No nosso caso, nós utilizamos a tecnologia", exalta André Ribeiro, sobre a importância de difundir o conhecimento.
"Nós acreditamos que o conhecimento é a base de tudo", defende Carlos Humberto. "Nós entendemos que precisaríamos de roteiros criativos, que contam histórias negras, e por outro lado a gente vem trabalhando com treinamentos para empresas, trazendo abordagens, reflexões e práticas antirracistas para qualificar os atendimentos."
Já para Antonio, a atuação da startup tem sido estratégica. "Trazemos essas experiências que nós mesmos vivemos e que nos marcaram para poder identificar lacunas que o mercado não enxergou e que a gente tem o conhecimento para compartilhar e criar soluções", destaca.
O pensamento dos cofundadores da Diáspora.Black é semelhante ao de Thais, que enaltece: "Eu entendi que através do cabelo eu consigo chegar em mais mulheres e, toda vez que alguém compra algo conosco, a história da Tereza de Benguela está no encarte que vai junto com o produto. Nossa missão é levar essa história para todo lugar", finaliza a líder - e porque não - rainha de Benguela.